Trocando de lugar



Fazia um tempo que eu estava pegando interesse por assuntos esotéricos, e um belo dia decidi ir mais profundamente. Um lado de mim não queria ir tão avançado assim. Outro, queria desbravar muito mais do que o que me ofereciam usualmente.

Uma noite, onde todos decidiram dormir mais cedo, resolvi por em prática o plano. Toda a minha familia era formada por religiosos, daqueles antigos que não aceitam nem o uso de short. Entrei num fórum de estudos e uma aba me chamou a atenção. Resolvi clicar, o que custava?

Até então, eu estivera olhando pra todos os cantos do meu quarto com medo de alguém entrar e me perguntar o que eu fazia. Depois que cliquei na aba, o medo desapareceu. Encarei a realidade.

Após algumas leituras, eu mal sabia com o que eu estava me metendo. Mas a curiosidade e a vontade de ir mais fundo habitavam em mim. Pela leitura envolvente, resolvi entrar no que parecia um ritual, mas não sabia qual era a finalidade dele. Dizia para eu pensar na pessoa que eu mais queria ajudar, não parecia se envolver com más intenções. Em seguida, pedia para eu entrar numa história em que essa pessoa me relatou anteriormente e que ela não sabia como lidar. De fora, na teoria todos nós sabemos como fazer quando nos contam algo de errado. Quando vivenciamos na nossa própria vida, raramente tomamos decisões que não nos corroem como um turbilhão de questionamentos e possibilidades. Um sono profundo me tomou e acordei numa cama. Não era minha, então fiquei olhando ao redor para entender o que se passava. Abria meus olhos lentamente e a luz rarefeita adentrava o quarto lentamente. O quarto arrumado, onde havia uma criança dormindo e uma mulher ao meu lado. Com cautela eu levantei e me olhei num mar desconhecido.

Onde eu estava? E...Quem eu era?

Corri para o banheiro e no espelho, o susto! Já não era uma ruiva de baixa estatura de lábios grandes e olhos analíticos, eu era um homem! Um homem que nunca tinha visto na vida. Sai do banheiro com uma provável feição assustada e percorri a casa em busca da sala, onde ansiava ver fotos que geralmente ficam ali expostas. Então sentei no sofá, sentia meu coração pulsar com força... Não era possível...

Relembrei da noite onde tudo isso tinha se iniciado. Na situação que foquei... Eu tinha lembrado de uma história que uma amiga de internet havia me contado. Onde o vilão era seu pai, que abruptamente era rude e a humilhava sem motivo aparente. E não precisa de motivos, é um posicionamento que nenhum pai deveria ter com a própria filha. Avistei a foto dela e dos irmãos que ela já tinha me mostrado pelo instagram. Realmente. Eu tinha trocado de lugar com o pai dela. Deitei novamente na cama e esperei o dia raiar. Bolei um plano torto na mente. Busquei em mim o pai que eu gostaria que ela tivesse.

Assim que ela acordou eu pensei no que eu como amiga, gostaria que o pai dela fizesse. Procurei na internet alguma receita de café da manhã para celíacos. A receita mais gostosa que eu poderia pensar. Finalmente acordada, eu deixei seu café da manhã preparado, dei bom dia sorrindo já esperando o susto que iria tomar. De um pai tirano à um bem humorado senhor que fizera um café da manhã especialmente para ela? Com certeza levaria um belo susto. Mas meu medo não era o que estava acontecendo na casa. Era infelizmente como o pai dela estava se virando no meu corpo, há milhas de distância.

Meu peito urrava dentro de mim ao pensar no que aconteceria assim que eu, ou melhor, ele acordasse no meu corpo. Na casa, ela me olhava de longe, ainda assustada com o que estava acontecendo. Ao passar do dia, tentei fazer o melhor dia da vida dela: comprei flores, dei algum dinheiro para que ela pudesse comprar algo que a fizesse feliz, olhava com carinho, elogiava a cada cliente que ela atendia na loja da família.

-Você foi muito atenciosa com aquela família que passou por aqui, acho que se fosse outra pessoa os atendendo, teríamos perdido o negócio! Disse.

Ela, sorriu sem jeito e um tanto desconfiada. Voltei para o que era o trabalho do pai dela, e eu não fazia ideia do que ele fazia. Pelo que ela me contava, eles vendiam carros. Fiquei o dia inteiro perambulando a loja e recebendo os clientes, e sempre passava o trabalho sujo para um outro funcionário. Obviamente eu não fazia ideia do que eu deveria fazer.

-Acho que vou comprar um sorvete, quer de qual sabor?
-Não quero sorvete não, pai. Obrigada.
-Então já sei, vou te trazer um açaí, prefere do grande ou do médio?
-Como você sabe? Bom, eu prefiro o médio.
-Trarei do grande,ok?
-Ok...

Bateu a hora de ir e fechar a loja, quase implorei pro funcionário fazer isso para mim. Meu trabalho na minha vida original passava longe de um vendedor de carros, e trabalhava numa empresa química, no laboratório.

Apenas no final do dia tomei coragem para sentar e conversar com ela sobre o que eu pensava sobre a relação Pai x Filha. Temia que ela percebesse que ele não era eu. E ela nunca falou de mim para o pai, então eu também não poderia perguntar como ele estava se passando do outro lado.

Sentei-me no quintal e pedi para ela se achegar. Assim que vi a mãe dela na quina da porta pedi para que nos deixasse sozinhos e evitasse que os outros irmãos viessem bisbilhotar. Era a hora do pai ter uma conversa íntima e urgente com a primeira bebê. A filha mais velha, o braço direito da família. A que sempre se esforçou em tudo dar certo mas por dentro tudo estava desmoronando e a culpa era minha. Era dele, mas eu fazia esse papel agora. Minha responsabilidade, precisava sanar esse fardo e fazer dessas ruínas um castelo novo. Sabia o quanto de influência negativa um pai abusivo tinha sobre uma filha que não havia pedido pra nascer passava calada e sem poder reagir.

Foi uma longa conversa, onde toquei na ferida e provoquei lágrimas. Quis desmistificar toda a dor que ele havia causado já imaginando o quanto de mágoa ela guardava, tanto por ouvir seus desabafos como amiga como por passar situação semelhante em casa. Depois de algumas horas, a abracei e pedi para que ela tentasse se proteger o máximo possível pois ficar sempre magoada não fazia bem, e a dor que os outros tentavam causar a ela não poderia ser maior que a própria vontade de viver e ser feliz, ela tem esse direito.

-Me desculpe filha, o pai não fez curso para saber como lidar com tanta coisa. E depois de te dar irmãos, sinto que nosso relacionamento se distanciou tanto... Eu não quero que nossa família vire ruínas por minha culpa. Eu tomei tantas atitudes estúpidas contigo e esqueci de pensar o quanto eu te magoava e te traumatizava.

E em meio a tantas lágrimas ela, soluçando e afastando o longo cabelo liso e loiro, ela sorriu e aceitou as desculpas do pai. Ou minhas. Até esse período nossas personalidades se fundiram e eu devia atuar bem. Agi como eu gostaria que o pai dela agisse com ela.

Evitei conversar o dia inteiro com os outros irmãos e com a esposa, procurei dormir cedo e com a consciência limpa. Sabia que tudo o que eu podia fazer já tinha sido feito. Ansiava pelo novo dia e tentar consertar mais coisas mas essa oportunidade não foi me dada.

Assim que acordei, já estava na minha casa. No meu corpo. E mal imaginava o que tinha acontecido comigo. Corri para o celular e aliviada, respirei. Intacto. Era impossível que ele soubesse minha senha e acessasse minhas coisas. Mas o que ele havia feito durante todas aquelas 24 horas no corpo de uma menina moça, em outra cidade?

Bem, eu não tinha coragem de perguntar o que tinha acontecido. Mas estava ansiosa pelo que minha amiga iria me contar sobre o dia anterior. Deixa toda essa questão de lado.

Aliviada, respirei esperançosa por um novo começo. Novos rumos.

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CONVERSATION

20 comentários :

Nayara Soares - Eccentric Beauty disse...

Você escreve tão bem *----* o testo me prendeu completamente, e mesmo lotada de coisa pra fazer, não consegui tirar os olhos do computador até chegar na última linha!
parabéns <3

Carolina disse...

Você não sabe o quanto teu comentário me deixa feliz e motivada, obrigada mesmo!

Rafaela Ivo (@vultuspersefone) disse...

Eu digo o mesmo da Nayara: fiquei presa no texto até acabar!
Gostei muito mesmo desse texto e amei a reviravolta da personagem acabar no corpo do cara. Você é muito talentosa na escrita, parabéns, sua linda!
Beijão!

www.vultuspersefone.blogspot.com

Carolina disse...

muito obrigada mesmo, esse tipo de comentário me motiva muito e tu, como blogueira, deve imaginar o quanto um feedback pode alterar o rumo de um blog. Bjs

Kelly Mathies disse...

Eu adorei o enredo e a história em si ♥ Você deu vida a personagens que dificilmente imaginaria dentro de um conto, mas consegui fazer isso com leveza e exatidão. No começo, me senti estranha quanto ao ritual, mas, de vez em quando, acontecem coisas que vem para o bem, não é?

Débora Vicente disse...

Mulher! Que texto! :o *-*
Já pensou em fazer uma historia no Whatpadd?! Com essa escrita te renderia muitos fãs, viu!
Adorei a história e assim como as meninas, não parei de ler até acabar, Haha <3

Unknown disse...

Nossa, não imaginava que seria um texto deste tipo. Pelo titulo esperava algo no sentido de auto-conhecimento, motivacional... kkk. Seu trabalho me surpreendeu, parabéns! Quem dera pudéssemos aliviar a dor de quem amamos... Beijos

Ju

Unknown disse...

Que texto bom! Você tem bastante talento. E, além disso, tem algo que eu considero essencial em qualquer escritor: a capacidade de prender o leitor no texto. Fui lendo e quando terminou eu pensei: mas já? Hahaha amei! Beijos e boa sorte nessa linda jornada da escrita.

www.brincandodeolivia.com

Unknown disse...

Uauu, que história! Amei sua criatividade e seu jeito de abordar a história... Está de parabéns! Quero saber o outro lado da história!! aaaaaaaa

Érika Monteiro disse...

Oi, tudo bem? Que texto mais incrível. Cada dia tenho gostado mais ainda de acompanhar o talento de blogueiras que colocam emoção no que escrevem. O texto é extenso e prende nossa atenção, não imaginava que o fim seria dessa forma me surpreendeu. Continue assim, sucesso. Beijos, Érika ^.^

Carolina Costa disse...

Oi xará! Que texto incrível! E a pergunta mais esperada de todos os tempos, tem continuação? Ahhhh, fiquei muito curiosa para saber o que aconteceu com o seu corpo (certo?). Adorei a ideia da narrativa, muito criativa! Parabéns.
Beijos

a disse...

Fiquei presa no texto // 3 haha
Que maneira linda de escrever, já penso em escrever um livro??
Eu iria amar ler.
Beojos

Carolina disse...

Sério que te cativei tanto? Que bom hahha <3

Carolina disse...

Obrigada pelos elogios <3

Carolina disse...

O ritual é pra dar close mesmo hauhaha Pra chocar, instigar o inusitado sabe? Sair do comum. Obrigada pelos gentis elogios <3

Carolina disse...

Eu tenho medo de Whatpadd pois acho que ninguém vai ler hahaha Prefiro ir ganhando território com textos menores, e com o passar do tempo, talvez eu publique algo ^^
Obrigada por ler ^^

Carolina disse...

De vez em quando eu escrevo motivacionais, mas é raro hihi Obrigada por ler ^^

Carolina disse...

Estou bem sim, e vc? Obrigada pelos gentis elogios, volte quando quiser. Bjs

Carolina disse...

Eu as vezes penso sim, Amanda. Mas me pergunto se alguém vai ler hihi Tenho medo de flopar total. Obrigada pelo apoio <3

Carolina disse...

Não sei se terá continuação, geralmente gosto de textos pequenos para ser mais marcante e focar nas emoções primarias sabe? Mas se o povo gostar mesmo, posso rascunhar um paralelo, ou uma continuação. Confesso que meu medo era o povo achar que eu estava romantizando o abuso de poder que alguns pais fazem com os filhos, tentei deixar o mais evidente possível que as atitudes dele eram abomináveis.
Obrigada pelo apoio, beijos!